segunda-feira, 26 de abril de 2010

CANTARES: literatura pornográfica dos pastores e pastoras de outrora.


Esta é tua estatura,

semelhante à tamareira

e teus seios a cachos.

Eu disse: “Subirei na tamareira

pegarei nas suas tâmaras”,

e que sejam teus seios

como cachos

e o cheiro do teu nariz,

como o das maçãs

e o céu da tua boca como vinho bom,

indo para o meu amado verdadeiramente,

escoando dos lábios adormecidos.


Eu sou para meu amado

e sobre mim está o seu desejo.

Vai meu amado,

sairemos pelo campo,

passaremos a noite entre os ciprestes.

Madrugaremos para ir para as vinhas,

vejamos se floresceu a videira,

as abriu o rebento e se floresceram as romãs.

Lá darei,

meu amor para ti.

As mandrágoras deram seu perfume

diante de nossas portas todas as delícias,

novas, também velhas,

meu amado, guardarei para ti.

(Cantares 7, 8-14)





Nosso título deve ter assustado a quem está acostumado à leituras teológicas, exegéticas e pastorais. Como poderemos imaginar que dentro do livro sagrado exista uma literatura pornográfica?

Peço que não se escandalizem ao ponto de não ler estas linhas que nos vêem de um olhar muito mais psicanalítico do que teológico e exegético.

Assim me perdoem os teólogos e os exegetas, pois eu vou cometer alguns pecados ao lidar com este texto sagrado.

Minha pesquisa bíblica segue um outro caminho bem diferente daquele que estamos acostumados na academia e nos seminários. Aqui confesso o meu primeiro pecado: não dou tanta importância ao método histórico crítico, mesmo reconhecendo a sua grande contribuição para o entendimento de alguns textos. Estou convencido de que a Bíblia está muito mais marcada pela mitologia do que pelos relatos históricos.

Começo minha pesquisa de Cantares usando um recurso fabuloso que hoje a internet pode nos disponibilizar: as imagens! Selecionamos uma palavra e o computador vasculha o mundo inteiro, e nos traz em segundos as imagens que foram colocadas na rede que ilustram a palavra de nosso interesse. Isso é incrível! Fiz então esta pesquisa com Cantares. E qual a minha surpresa? Não há quase nenhuma representação iconográfica deste bonito livro da Bíblia. Raras são as imagens que ilustram o livro de Cantares. Tente você mesmo e verifique como são raras as imagens que ilustram o conteúdo deste livro na internet. Não achei este texto ilustrando o interior de igrejas ou de catedrais, como é comum com vários outros textos bíblicos.

Fiquei me perguntando o por quê? E percebi que o livro de Cantares é também muito pouco lido nos cultos e celebrações de nossas igrejas cristãs. Então fiquei imaginando como seria fazer um filme de Cantares, ou então escrever uma história em quadrinhos de Cantares, ou então pintar as principais cenas deste livro em uma bonita catedral. O resultado seria: a PORNOGRAFIA !

Não se assustem. A palavra pornografia tem haver com imagens da prostituição. Isso mesmo. Imagens ou textos que nos remetem a uma sexualidade proscrita, a uma sexualidade desencaixada, a uma sexualidade marginal. Assim me parece ser a literatura de Cantares. Um texto tão desencaixado, tão proscrito, tão marginal que nem mesmo a iconografia ousou representa-lo no interior das igrejas. Imaginemos uma peça teatral representando as cenas descritas em Cantares e imaginemos este teatro sendo apresentado no lugar da leitura da palavra, dentro do culto evangélico ou da missa católica...! Impossível representar este texto bíblico, sem abrirmos à caixa lacrada dos desejos humanos, ligados a libido, a sexualidade corpórea, libertando a energia erótica humana.

Assim, por séculos, este conteúdo pornográfico foi censurado das mais diferentes formas. Alguns disseram que os personagens deste texto, não são humanos, representam a Igreja e o Deus Javé. Outros simplesmente ignoram este livro, como se ele não existisse.

Parece que é exatamente assim que fazemos com a literatura pornográfica. Ela faz parte da vida da maioria das pessoas. Ajuda nos processos de iniciação sexual de meninos e meninas, ajuda a libertar desejos proibidos em jovens, adultos e em idosos. Ajuda a libertar fantasias sexuais. Enfim, a literatura pornográfica tem um papel muito positivo no desenvolvimento e na vivência sadia da sexualidade humana. E a sua marginalidade só confirma a profunda crise que sempre viveu a humanidade cristã: a distância dos desejos sexuais e a possibilidade real de sua satisfação.

Assim me permito imaginar que a literatura contida em Cantares é uma literatura do amor erótico marginal do tempo dos pastores e das pastoras. Em Cantares se fala de sexualidade explícita. A transa não tem limites de lugar, de padrões institucionais, ou de preceitos religiosos. Não se fala em Deus neste livro, pelo menos não no Deus que castra e que domina – um livro secular. E os protagonistas da sexualidade em Cantares não são casados, são solteiros. E em sua solterice, se permitem o exercício da sexualidade sem limites, sem fronteiras. Cantares fala o tempo inteiro dos seres humanos e de suas necessidades mais ocultas e profundas – os desejos e fantasias eróticas marginais, é neste sentido uma literatura pornô - gráfica.

Se você conseguiu me acompanhar até aqui, lhe convido agora a fazer uma visitação em nossa literatura poética brasileira da MPB, onde busco uma música bastante polêmica que mexe com os nossos conceitos de amor, sexualidade, sagrado e profano.

Amor é um livro - sexo é esporte

Sexo é escolha - amor é sorte

Amor é pensamento - teorema

Amor é novela - sexo é cinema

Sexo é imaginação - fantasia

Amor é prosa - sexo é poesia

O amor nos torna patéticos

Sexo é uma selva de epiléticos

Amor é cristão - sexo é pagão

Amor é latifúndio - sexo é invasão

Amor é divino - sexo é animal

Amor é bossa nova - sexo é carnaval

Amor é para sempre, sexo também

Sexo é do bom... Amor é do bem...

Amor sem sexo é amizade

Sexo sem amor é vontade

Amor é um, sexo é dois

Sexo antes, amor depois

Sexo vem dos outros,

E vai embora

Amor vem de nós,

E demora

Amor é cristão - sexo é pagão

Amor é latifúndio - sexo é invasão

Amor é divino - sexo é animal

Amor é bossa nova - sexo é carnaval

Amor é isso, sexo é aquilo

E tal e coisa... e coisa e tal

(Amor e o sexo – Rita Lee, Roberto de Carvalho e Arnaldo Jabor)


Quantas perguntas nos trazem esta pequena poesia. Sempre nos foi ensinado que o sexo só pode ser vivido se for com amor. E em nossas igrejas cristãs não se fala em sexo, só em amor. Quem cuida então da sexualidade ?

- É justamente a pornografia! Admitamos ou não, todo o bom cristão já fez algum acesso a farta literatura pornográfica disponível nas bancas de revistas, nos filmes do cinema, ou nos computadores domésticos.

Por que se tem tanto medo de aproximar a religião da sexualidade? Vejamos o que a música acima nos diz sobre o sexo - ele é: um esporte, escolha, do escurinho do cinema, mexe com a imaginação e a fantasia, é uma selva de epiléticos, é pagão, é invasão, é animal, é carnaval, é para sempre, é bom. Em resumo: sexo não se controla, não se domestica.

No mundo sagrado cristão não fala em sexo, pois a prática livre da sexualidade promove a libertação mais ampla do ser humano. Logo se conclui que as práticas religiosas que castram as pessoas pretendem impor um processo constante de domesticação e submissão, tornar o ser humano “fiel”.


A libertação da literatura pornográfica


A literatura pornográfica é muito mais extensa e bem elaborada, do que podemos imaginar. Tem uma longa história de grandes intelectuais que dedicaram as suas vidas a produzir a linguagem que fala para os desejos mais internos e íntimos dos seres humanos. Esses desejos estão sempre contidos de forma muito segura em nosso inconsciente. Ali moram todas as nossas fantasias que se constituem, ao longo de nossa história de vida, onde acumulamos profundas e intensas frustrações. Libertar esses sentimentos que estão tão bem guardados em nós, é sempre perigoso, pois quando ganham a realidade, empoderam os homens e mulheres, com muita energia que lhes permite promover coisas que antes não se permitiam.

A literatura pornográfica cumpre um papel muito semelhante ao das bebidas que embriagam as pessoas. Liberta a libido, liberta os desejos, liberta o ser humano para o novo e para o gozo. Talvez por esta razã as Igrejas de uma forma geral, condenam tanto a pornografia e as bebidas alcoólicas. Pois não desejam de fato libertar o ser humano, e sim fazer-los fiéis, no sentido de obedientes, pacíficos, ordeiros.

Não pretendo aqui fazer um longo histórico da literatura pornográfica, pois esta pesquisa está disponível na internet para quem desejar continuar a aprofundar este tema. Não se sinta constrangido ou constrangida, pesquise sobre a história da literatura pornográfica e você vai ser surpreendido(a) com o um universo altamente libertário contido nesta produção humana.

Quero apenas sugerir que possamos olhar para o nosso texto sagrado, com um pouco mais de malícia, com um pouco mais de desejo sexual, com um pouco mais de interesse no prazer carnal, que levam as pessoas a gozarem e serem felizes - plenas.

Por esta razão trago aqui uma poesia pornográfica que encontrei em meio a tantas coisas espetaculares que estão sendo produzidas. Viajando pelo “youtube”, na internet, encontrei Elisa Lucinda, uma grande poetisa brasileira contemporânea que precisa ser conhecida em seu todo, para que possamos entender que a sua poesia pornográfica é altamente libertária e desmascara nossa hipocrisia cristã, que tenta negar o tempo inteiro o nosso desejo, as nossas fantasias.

Passam muitas pessoas no saguão dos aeroportos.

Passam neste aeroporto da agora,

e eu, no meu pensamento,

não me comporto, imagino elas fodendo:

fulano com fulano,

são casados, gozam, fazem planos?

E ela, quer logo que acabe?

E ele, penetra rosnando?

Fantasio as inúmeras possibilidades de encaixes,

em como foram as noites de amor que tiveram para fazer essas

crianças chinesas africanas alemãs francesas mexicanas libanesas

brasileiras cabo-verdianas espanholas cubanas holandesas

senegalesas turcas e gregas.

(meu pensamento é inconveniente mas ninguém sabe, escrevo num café, estou, por fora, muito chique no cenário e nitidamente estrangeira.)


Agora passam dois homens.

Sentam à mesa ao lado.

Falam germânico mas a tradução é da mais alta putaria,

Uma iguaria da mais pura sacanagem!

Eu sei, são gays. Eles não sabem que eu sei.

Pensam que escrevo o abstrato

E capricham descansados ao colo do idioma que não alcanço.

Mas sou poliglota na linguagem dos olhares,

cílios a mais antiga cortina do mais antigo teatro

na pátria universal dos gestos, meu bem!

Eles não escapam.

Um chupa muito o outro, que eu sei,

e o magrinho gosta de dar por cima e de lado.

Importante dizer que dentro desse meu pensamento safado

também não tem pecado.

Só me diverte

Ver o que todos negam,

O que não se diz no social,

Uma radiografia verbal da intimidade alheia é o que faço aqui,

Sem que ninguém suspeite,

Sem ninguém me permitir.

Aquele tem pau pequeno e, pior que isso,

e, mais que suas parceiras, acha isso um problema.

Aquele ali também tem, mas arde na cama e se empenha muito

compensando a diferença.

Aquela, num outro esquema,

diz não gostar da coisa

e fala sem parar.

Só uma pirocada de jeito para fazê-la calar.

A gostosa gordinha engole a espada todinha

daquele altão desajeitado,

cujo grosso membro se torna,

em meio às coxas dela, disfarçado.

E o velhinho punheteiro

De pau mole com jornal no colo?

Talvez seja o único a adivinhar o teor dos meus escritos,

dado que me olha dissimulado e constante

de modo a nunca perder meus segredos de vista.

(Com licença mas é dessa matéria hoje minha poesia)

Enxerida, vejo a mulher com cabelo cortado à la moicano

Com a menina que iniciara a tiracolo,

Feliz sem ser por ela lambida

E sem saber no que estou pensando.


Passam as pessoas

no saguão do aeroporto,

fingem que fazem check-in

fingem viajar sérias e de férias,

fingem estar trabalhando...

mentira,

pra mim ta todo mundo trepando! (LUCINDA, 2006)


Que bom que você deu conta de chegar até aqui. Acho que algumas pessoas já nos abandonaram no início deste artigo. Mas sempre tem alguém que se interessa pela pornografia. É aquele sentimento do proibido que vai despertando o interesse e então vamos nos permitindo transgredir aos padrões estabelecidos e pouco a pouco, vamos libertando os nossos grandes e pequenos desejos internalizados em nossa alma. Não deveria a religião fazer justamente isso: libertar os desejos da alma? Fazer as pessoas felizes? Permitir e estimular o gozo e o prazer humano?

O saguão do aeroporto de Frankfurt, cenário por onde Elisa Lucinda desnuda os sentimentos de desejo e de gozo, contidos das pessoas que por ali circulam, pode ser qualquer outro lugar. No ambiente de trabalho, no passeio pelo parque, na festinha de aniversário, no escurinho do cinema, no jogo de futebol, nas reuniões do partido político, nos grandes comícios, nas reuniões de culto ou da missa. Em qualquer lugar e em qualquer tempo, vamos sempre encontrar seres humanos desejosos e ávidos pela satisfação de seus desejos. Assim sendo faça você mesmo o exercício de imaginar como Elisa Lucinda, as mais variadas tramas de amor e de sexo que estão contidas nos gestos, nos olhares, nas palavras que vamos proferindo por aí em qualquer lugar.

Agora convido você a voltar ao texto bíblico de cantares. Leia-o atentamente e faça como Elisa Lucinda, deixe que a sexualidade seja liberta na trama literária do amado e da amada. Com olhares mais pornográficos se verá que não é possível ler Cantares, sem que nossa sexualidade seja também envolvida, despertada. E então Cantares nos ajuda a nos tornarmos seres desejantes, eróticos, prontos para o amor e também para o sexo.

Assim podemos construir um novo olhar para muitos outros textos da Bíblia. Você mesmo poderá eleger algum texto de sua preferência. Basta haver pessoas se relacionando, poderemos ver ali a sexualidade humana sendo despertada e despertando as pessoas para a vida, para o gozo, para o prazer e para a liberdade.

Portanto a Bíblia é sim um livro sexuado. Pois ela retrata a história do cotidiano de homens e mulheres, jovens e crianças, gays e lésbicas, prostitutas e prostitutos, adúlteros e adúlteras. Fico pensando como seria oportuno que em cada trabalho exegético que fazemos de algum texto da Bíblia, pudéssemos agregar a pergunta sobre a sexualidade humana contida naquele texto. Com certeza faríamos grandes descobertas, e nossos preconceitos no campo da sexualidade começariam a ser desconstruidos.

Por isso recomendo que façamos muitos exercícios de leitura pornográfica. É claro que como toda a literatura existem produções de boa e de péssima qualidade. O juízo será nosso. Mas façamos o exercício. Nossa pequena caixinha de desejos escondidos a sete chaves, começará a ser libertada e vamos ver que muitas coisas que vemos nos outros, como comportamento inadequado, também está contido em cada um de nós.

Vamos ler Cantares não só com os olhares dos santos e dos religiosos, nem só com os olhares dos bem casados. Vamos entrar neste livro com os olhares de nossos mais íntimos desejos e fantasias sexuais e eróticas. Assim descobriremos que nossos desejos tão duramente condenados e pecaminalizados, são desejos humanos, de pessoas humanas que almejam a completude, de carinho, de amor e de sexo – “para que o meu gozo permaneça em vós, e o vosso gozo seja completo” (João 15,12)



BIBLIOGRAFIA PARA APROFUNDAMENTO

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RAVASI, Gianfranco. Cântico dos Cânticos. Tradução de Jose Raimundo Vidigal. São Paulo: Paulinas, 1988. (Coleção Pequeno comentário Bíblico AT).

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WALLACE, Willian e HILL, Charlotte. Erótica: Antologia Ilustrada da Arte do Sexo, Ediouro, 2003.

Um comentário:

  1. Isso é que demonstra verdades sem pudores....o sexo está rondando todas as cabeças,todos os pensamentos,nada impede a fantasia,e lá da mais recatada prosa de opressores vem a necessidade de podar nos,a criação de seres libertos eliminaria regras,amarras,obediências,cercas do limite da imaginação e poder.....

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