terça-feira, 27 de abril de 2010

EVA LIBERTADA: UMA LEITURA MÍSTICA DA TRANSGRESSÃO


Reverendo Elias Mayer Vergara, OST 

O mito de Gênesis 3, traz como principal protagonista a personagem Eva, que dentro do enredo mitológico tem historicamente sido interpretada como a causadora do pecado e da queda do homem. Assim a Igreja tem justificado uma série de comportamentos de domínio e de menosprezo ao papel da mulher.

A delimitação do texto mitológico de nossa reflexão está contida entre Gn 2, 25 – Gn 4, 1. Em Gênesis Gn 2, 25, a nudez do homem e da mulher não desperta nenhum interesse sexual, em Gn 3, 7 a nudez desperta interesse sexual que é contido pela lógica do jardim e em Gn 4, 1, fora do jardim, homem e mulher completam-se sexualmente. A sexualidade portanto é o eixo deste enredo mitológico. Inicialmente negada, depois despertada e finalmente exercida. Fica claro portanto que quando nos referirmos à Gênesis 3, estaremos incluindo o verso anterior e posterior a este capítulo.

A “jornada do herói” que é um esquema hermêutico consolidado entre pesquisadores do gênero do mito será aqui utilizada no processo de desconstrução monossêmica (um só sentido) feita no mito de Gênesis 3.

A transgressão sempre interpretada de forma negativa por aqueles que são encarregados de manter a ordem institucional, aqui será vista como o elemento

místico necessário para romper com a realidade estabelecida. Eva nos ajudará a um exercício da mística da transgressão que se opõe frontalmente ao exercício piedoso da mística da obediência, que por ser cega e alienante, nunca transpõe a realidade dada, fortalecendo assim as estruturas sociais e religiosas de desigualdade e opressão.

A “jornada do herói” se constitui em uma estrutura arquetípica muito presente na maioria dos mitos. Ao evocar o herói mítico, é despertado dentro de cada um que vivência a narrativa mitológica, o herói existente arquetipicamente em todos os seres humanos. Este é o mistério que envolve a história de vida de todos os santos, profeta e dos heróis míticos. A energia que alimenta uma caminhada transgressora é pois a energia mística que faz com que o herói mítico, o santo ou o profeta encontrem forças suficientes para transformar o mundo dado, no mundo esperado.

Convido o leitor a despojar-se da densa força dogmática existente no mito do jardim de Gênesis 3, abrindo a possibilidade para múltiplas interpretações e significados. A “jornada do herói” será utilizada aqui como um roteiro de leitura bíblico, que pode também ser chamado de roteiro da mística dos santos, profetas e dos heróis, que só são assim considerados, pois foram movidos pela energia mística da transgressão rompendo com o mundo dado, possibilitando assim o mundo esperado.

Segundo Capel , a jornada do herói mítico é construída através de seis principais passos:

1. a inocência,

2. o chamado à aventura,

3. a iniciação,

4. os aliados,

5. o rompimento

6. celebração.

1. Primeiro passo: a inocência

Segundo Capel , o estado de inocência na jornada do herói mítico é uma perfeita adequação do indivíduo ao status quo. Não há nesta fase nenhum sinal dos desafios que sobrevirão. O herói arquetípico parte de um estado de inocência e relativa ingenuidade.

Ora, os dois estavam nus, o homem e sua mulher, e não se envergonhavam.

Em Gênesis 2, 25, a nudez é despojada de qualquer sentimento de vergonha, ou de desejo sexual. Pode-se afirmar portanto, que o homem e a mulher não percebiam-se sexualmente, embora estivessem nus. Entre eles não havia o outro e consequentemente o desejo do outro. Nessa introdução mitológica, a relação humana é de completa nomia social. É a vida que caiu em sua rotina. Nada acontece de novo. A ordem precisa ser mantida.

2. Segundo passo: o chamado à aventura

Capel afirma que o segundo passo da jornada do herói é marcada pela quebra da ordem do paraíso. Alguma coisa rompe os padrões e desafia o herói a submeter-se a uma prova. Este chamado pode expressar-se como uma crise, uma doença. Essa fase está relacionada ao desejo secreto que todos temos de crescer, de realizar nosso verdadeiro ser. Neste momento só há duas possibilidades: atender ou não ao chamado. Não atender implica em manter-se no estado de inocência; atender implicará em saltar no desconhecido.

A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos, que Iahweh Deus tinha feito. Ela disse à mulher: ‘Então Deus disse: Vós não podeis comer de todas as árvores do Jardim?” A mulher respondeu à serpente: ‘Nós podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: Dele não comereis, nele não tocareis, sob pena de morte’. A serpente disse então à mulher: ‘Não, não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal’.

Na narrativa mitológica de Gênesis 3, este é o momento em que o personagem masculino Adão é completamente afastado da narrativa. A mulher, que ainda não tem um nome, tem um grande encontro com a serpente que é o mais polêmico e ambíguo personagem desta história.

A serpente representa, entre tantas coisas, o símbolo arquetípico fálico. É uma força divina que está agora a encantar aquela mulher que vivia na apatia e na nomia do jardim. O falo que ergue-se diante de si em forma de serpente, propõe à mulher quebrar as regras que o Deus Iahweh havia estabelecido. O encontro com a serpente desperta um desejo até então contido: o desejo de ser também um Deus, o que é ativado pela pulsão da sexualidade. E qual é o maior atributo de um Deus senão a sua capacidade criadora? E criar é sempre uma atividade que envolve energia sexual. A mulher é possuída pela força fálica da serpente, que lhe dá forças suficientes para lutar contra a apatia e a nomia do Jardim. A mística transgressora é pois uma mística que envolve energia sexual. Este encontro da mulher com a serpente está envolto de grande energia sexual. O desejo, sentimento profundamente humano e sexual, é aqui despertado. Sem desejo é impossível viver a mística da transgressão.

3. Terceiro passo: a iniciação.

Segundo Capel , na jornada do herói, a iniciação se dá no momento em que o herói se depara com novos e estranhos mundos, confronta-se com a possibilidade da morte, extraindo assim dentro de si a força e a sabedoria desconhecidas para sobreviver.

A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista, e que essa árvore era desejável para adquirir discernimento. Tomou-lhe o fruto e comeu.

Aqui a mulher vai ao encontro da satisfação de seu desejo. O desejo é ser também um Deus, assim como a Serpente e Iahweh o são. Para se transformar em um Deus criador, era necessário encontrar-se com a divindade da árvore do

bem e do mal, pois esta já exercia sua capacidade criadora: ela produzia frutos. A árvore pode arquetipicamente representar tanto o feminino como o masculino. A mulher apenas conhecia o feminino. Comer o fruto coloca a mulher em contato também com o masculino que fecundou a árvore e assim é iniciada na tarefa criadora, procriadora. O fruto é o resultado da sexualidade da árvore, e outras vezes pode representar o próprio ato sexual. Este encontro com a árvore do bem e do mal pode simbolicamente representar a iniciação sexual da mulher.

Na mística da transgressão não se pode evitar ou negar os opostos. Aquela mulher completamente apática e indiferente a sua sexualidade não é mais a mesma. Ela já entendeu que para ser um Deus criador, é necessário o encontro do feminino com o masculino.

4. Quarto passo: os aliados

Para Capel o herói necessita de ajuda em sua jornada, que pode ocorrer através de conselhos, de amuletos, ou pode ainda ser fruto da própria crise promovida pelo chamado ou pela iniciação. Os aliados representam reservas de sabedoria que o herói pode utilizar para enfrentar sua jornada de rompimento.

Deu-o também a seu marido, que com ela estava e ele comeu.

Na narrativa mitológica de Gênesis 3, a serpente e a árvore despertam através de sua representação fálica a sexualidade na mulher. Esta vai então encontrar-se com o homem Adão que está completamente absorvido pela lógica da apatia e nomia do jardim. É um homem sem nenhum poder fálico. Então, a mulher oferece-lhe o saboroso fruto do qual acabara de comer. O homem compartilha daquele desejo, comendo do fruto da árvore do bem o do mal. Assim, simbolicamente se torna cúmplice de toda a caminhada da mulher, que ele não percorreu. Ambos estão agora sob a lógica da árvore: podem gerar frutos, criar, procriar.

A mulher tem agora grandes aliados: a serpente, a árvore e o homem com quem pode completar-se sexualmente. Com todas estas forças que se associam ao desejo de tornar-se divindade criadora, nossa heroína está pronta para enfrentar o grande dragão desse mito: Aquele que a todos quer possuir, sem dar a ninguém a oportunidade do exercício da liberdade criadora. É a lógica do Deus Iahweh.

A mística da transgressão necessita de uma coletividade de aliados. É necessário uma comunidade fraterna entre aqueles que acreditam no novo mundo, na nova sociedade, na nova igreja.

5. Quinto passo: o rompimento

Segundo Capel apesar da ajuda dos aliados, o rompimento só pode resultar da transformação do herói e de novas habilidades. É hora de transpor o umbral do mundo dado para o mundo desejado.

Então abriram-se os olhos dos dois e perceberam que estavam nus; entrelaçaram folhas de figueira e se cingiram. Eles ouviram o passo de Iahweh Deus que passeava no jardim à brisa do dia e o homem e sua mulher se esconderam da presença de Iahweh Deus, entre as árvores do jardim. Iahweh Deus chamou o homem: ‘Onde estás?’, disse ele: ‘Ouvi teu passo no jardim,’ respondeu o homem; ‘tive medo porque estou nu, e me escondi.’ Ele retomou: ‘E quem te fez saber que estavas nu? Comeste, então, da árvore que te proibi de comer! ’ O homem respondeu: ‘A mulher que puseste junto de mim me deu da árvore, e eu comi!’ Iahweh Deus disse à mulher: ‘Que Fizeste?’ E a mulher respondeu: ‘A serpente me seduziu e eu comi.’ Então Iahweh Deus disse à serpente: ‘Porque fizeste isso és maldita entre os animais domésticos e todas as feras selvagens. Caminharás sobre teu ventre e comerás poeira todos os dias de tua vida. Porei hostilidade entre ti e a mulher, entre tua linhagem e a linhagem dela. Ela te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar’. À mulher ele disse: ‘multiplicarei as dores de tuas gravidezes, na dor darás à luz filhos. Teu desejo te impelirá ao teu marido e ele te dominará.’ Ao homem, ele disse: ‘Porque escutaste a voz de tua mulher e comeste da árvore que eu te proibira comer, maldito é o solo por causa de ti! Com sofrimento dele te nutrirás todos os dias de tua vida. Ele produzirá para ti espinhos e cardos, e comerás a erva dos campos. Com o suor de teu rosto comerás teu pão até que retornes ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu és pó e ao pó tornarás.

Os olhos se abrem para aquilo que antes não se via. A pulsão sexual agora é investida de um para o outro. O homem deseja a mulher e a mulher deseja o homem. Mas eles continuam dentro da lógica do jardim. Então é necessário cobrir a genitália, para que aquilo que agora se torna visível e desejável possa ser contido provisoriamente. Adão e a mulher precisam enfrentar o poder do Deus Iahweh, que a ninguém permite viver sua possibilidade criadora. Para fazer sexo, era necessário transpor a Iahweh, era necessário transpor o portal do jardim.

O enfrentamento acontece como se fosse um grande tribunal de julgamento. Iahweh não suporta a concorrência com outros Deuses criadores. Como qualquer poder totalitário faria, Iahweh sentencia e expulsa os transgressores. A mulher, ao romper com a lógica da nomia do jardim, provoca um despertamento para a sexualidade, para a criatividade e para a liberdade de todas as criaturas.

6. Sexto passo: a celebração

Segundo Capel , a jornada termina com o retorno do herói, carregado de dádivas e de sabedoria. Ele é julgado mais sábio, mais profundo, quase divino. O herói que regressou não é o mesmo que partiu – devido, talvez ao casamento, à mudança de estado de um mortal para um Deus.

O homem chamou sua mulher ‘Eva’, por ser a mãe de todos os viventes. Iahweh Deus fez para o homem e sua mulher túnicas de pele, e os vestiu. Depois disse Iahweh Deus: ‘Se o homem já é como nós, versado no bem e no mal, que agora ele não estenda a mão e colha também a árvore da vida, e coma e viva para sempre!’ E Iahweh Deus o expulsou do jardim de Éden para cultivar o solo de onde fora tirado. Ele baniu o homem e colocou, diante do jardim de Éden, os querubins e a chama da espada fulgurante para guardar o caminho da árvore da vida. O homem conheceu Eva, sua mulher; ela concebeu e deu a luz a Caim.

A mulher passou a se chamar Eva, que significa Vida! Iahweh blefou, Eva não morreu e sim viveu – a serpente estava certa.

Adão e Eva passam a associar-se ao panteão divino, o próprio Deus Iahweh apresenta-se no plural e reconhece-os como Deuses. Aqui há um forte indício de que estamos falando de um Israel que é ainda profundamente politeísta.

O Deus Iahweh veste, então, Adão e Eva com túnicas finas, feitas de peles de animais, em um verdadeiro ritual de investidura. Vestir alguém com roupas finas é investi-lo de autoridade. Vestir Adão e Eva é parte do ritual de individuação presidido por Iahweh, onde este reconhece e investe de autoridade os novos Deuses ingressos ao panteão divino.

Os querubins são convocados para lacrar o Jardim e não permitir o acesso à árvore da vida. Parece que este é um novo blefe de Iahweh: proíbe o acesso à árvore da vida, quando a vida já está posta para Adão e Eva .

Agora, fora do jardim e de todas as forças castradoras da sexualidade humana, libertos da lógica do Deus Iahweh, a grande festa enfim vai ser celebrada: Adão e Eva se relacionam sexualmente! E desta relação nasce o seu primeiro filho chamado Caim. É a divindade de Adão e Eva atuando como Deuses criadores.

E assim se conclui a jornada da heroína Eva. De uma sexualidade completamente desconhecida, castrada, negada passa a uma sexualidade plenamente desejada, exercida, gozada e frutificada.

A profecia e a mística transgressora são elementos que se evidenciam em todos os passos da jornada do herói. A transgressão que suscita o rompimento, quinto passo da jornada, é a vocação por excelência do profeta e do místico. O profeta é um ser que destoa do status quo vigente.

O profeta é um ser incomodante, perturbador da ordem, um promovedor do caos. A transgressão de Eva foi fundamental para que o processo de individuação humana, nela representado arquetipicamente, pudesse ter acontecido. Não transgredir teria implicado em não nascer para a vida humana, para a sexualidade, para a fecundidade da terra, para a vida, enfim para a capacidade criadora. A profecia encontra em Gênesis 3 uma forte possibilidade de legitimação.

A mística transgressora que move o profeta, assim como o herói mítico e os santos, está contida dentro de todos os seres humanos como possibilidade. Para revelar esse profeta transgressor, é igualmente necessário atender ao chamado, e seguir os demais passos da jornada, que podem ser utilizados como um roteiro da mística transgressora. Eva é pois a primeira profetiza bíblica. Seu exemplo de indignação inspirou e tem inspirado muitos outros homens e mulheres a seguirem a mesma jornada profética, alimentados pelo mais profundo desejo de transformar o mundo dado no mundo desejado.

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